sysyphus
Dirigido por GEORGE NERI
Documentário 63 minutos
“Uma coisa apenas:
essa densidade e essa estranheza do mundo,
isto é o absurdo.”
Albert Camus - O mito de sísifo - Ensaio sobre o absurdo
Personagens
Escolhemos três locações para acompanhar a rotina desses trabalhadores Elevador Lacerda • Base naval • Gruta da Mangabeira
Expor a condição de 3 trabalhadores, subindo e descendo suas “montanhas” dia após dia com suas “pedras”, será o mesmo que retornar ao mito de Sísifo. A grandeza de um Sísifo ou de um José, Agnaldo, Fernando é saber que a pedra vai rolar de novo, para sempre. Nosso objetivo principal é transformar o mito em realidades, esmiuçando a filosofia teórica em vida prática. O esforço dos trabalhadores ao subir a “montanha” ganhará representatividade nas imagens, sendo realizada no caminhar, no suor, na rotina, no dinheiro, no contraste com as ambiências, na ida e na volta. As falas e a relação do personagem com a sua própria história e trajetória, suas razões de estar ali, comporão junto com as imagens o fio narrativo para construção do filme. As três situações de trabalho escolhidas tem haver com a premissa do subir e do descer, trabalhos que acontecem em espaços arquitetônicos que remetam a uma trajetória de subida e descida.
Consultoria com
Geraldo Sarno
Fichamento do livro O homem revoltado realizado por Morgana Poeises
A conclusão última do raciocínio absurdo é, na verdade, a rejeição do suicídio e a manutenção desse confronto desesperado entre a interrogação humana e o silêncio do mundo.
Para dizer que a vida é absurda, a consciência tem necessidade de estar viva.
De uma certa maneira, o homem que se mata na solidão preserva ainda um valor, já que aparentemente ele não reivindica para si nenhum direito sobre a vida dos outros.
Não se é niilista pela metade. O raciocínio absurdo não pode ao mesmo tempo preservar a vida daquele que fala e aceitar o sacrifício dos outros.
O absurdo é, em si, contradição.
Desse simples ponto de vista, a posição absurda é, em ato, inimaginável. Ela é também inimaginável em sua expressão. Qualquer filosofia da não significação vive em uma contradição pelo próprio fato de se exprimir.
A única atitude coerente baseada na não-significação seria o silêncio, se o silêncio, por sua vez, não tivesse o seu significado. A absurdidade perfeita tenta ser muda.
Para escapar da complacência, o raciocínio absurdo encontra, então, a renúncia. Ele recusa a dispersão e desemboca em um despojamento arbitrário, um parti pris de silêncio, a estranha ascese da revolta.
Aliás, não é possível fundamentar uma atitude em uma emoção privilegiada.
Mas a intensidade de um sentimento não implica que ele seja universal.
Os grandes sofrimentos, assim como as grandes alegrias, podem estar no início de um raciocínio. São intercessores. Mas não se saberia como encontrá-los e mantê-los ao longo desses raciocínios.
Em seguida, é preciso quebrar os jogos fixos do espelho e entrar no movimento pelo qual o absurdo supera a si próprio.
A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma conciliação injusta e incompreensível.
Mas seu ímpeto cego reivindica a ordem no meio do caos e a unidade no próprio seio daquilo que
foge e desaparece.
Sua preocupação é transformar.
O homem é a única criatura que se recusa a ser o que é.
Que é um homem revoltado? Um homem que diz não.
A revolta não ocorre sem o sentimento de que, de alguma forma e em algum lugar, se tem razão.
De certa maneira, ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de direito a não ser oprimido além daquilo que pode admitir.
Calar-se é deixar que acreditem que não se julga nem se deseja nada, e em certos casos é, na realidade, nada desejar.
O desespero, como o absurdo, julga e deseja tudo, em geral, e nada, em particular. O silêncio bem o traduz.
Por mais confusa que seja, uma tomada de consciência nasce do movimento de revolta.
O surgimento do Tudo ou Nada mostra que a revolta, contrariamente à voz corrente, e apesar de oriunda daquilo que o homem tem de mais estritamente individual, questiona a própria noção de indivíduo.
Observemos, a seguir, que a revolta não nasce, única e obrigatoriamente, entre os oprimidos, podendo também nascer do espetáculo da opressão cuja vítima é um outro. Existe portanto, neste caso, identificação com outro indivíduo.
Na revolta, o homem se transcende no outro, e, desse ponto de vista, a solidariedade humana é metafísica.
A revolta não é realista.
O ressentimento é sempre ressentimento contra si mesmo. O revoltado, por outro lado, em seu primeiro movimento recusa-se a deixar que toquem naquilo que ele é. Ele luta pela integridade de uma parte de seu ser. Não busca conquistar, mas impor.
A revolta, pelo contrário, em seu princípio, limita-se a recusar a humilhação sem exigi-la para os outros. Aceita inclusive o sofrimento para si mesma, desde que sua integridade seja respeitada.
Esse amor que não tem aplicação, por ter negado Deus, decide-se então a transferi-lo para o homem em nome de uma generosa cumplicidade.
De resto, no movimento da revolta, tal como o focalizamos até aqui, não se elege um ideal abstrato, por falta de sentimento, e com um objetivo de reivindicação estéril. Exige-se que seja levado em conta aquilo que, no homem, não pode ficar limitado a uma ideia esta parte ardorosa que não serve para nada a não ser para existir.
A revolta transcende o ressentimento.
Aparentemente negativa, já que nada cria, a revolta é profundamente positiva, porque revela aquilo que no homem sempre deve ser defendido.
Em sociedade, o espírito de revolta só é possível em grupos nos quais uma igualdade teórica encobre grandes desigualdades de fato. O problema da revolta, portanto, só faz sentido no interior de nossa sociedade ocidental.
A revolta é o ato do homem informado, que tem consciência de seus direitos.
O homem revoltado é o homem situado antes ou depois do sagrado e dedicado a reivindicar uma ordem humana em que todas as respostas sejam humanas, isto é, formuladas racionalmente. A partir
desse momento, qualquer pergunta, qualquer palavra é revolta, enquanto, no mundo do sagrado, toda palavra é ação de graças.
Longe do sagrado e de seus valores absolutos, pode-se encontrar uma regra de conduta.? Esta é a pergunta formulada pela revolta.
Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ele
ganha a consciência de ser coletivo, é a aventura de todos.
Eu me revolto, logo existimos.
A revolta metafísica é o movimento pelo qual um homem se insurge contra a sua condição e contra a criação. Ela é metafísica porque contesta os fins do homem e da criação.
A mais elementar rebelião exprime, paradoxalmente, a aspiração a uma ordem. (…) Este se insurge contra um mundo fragmentado para dele reclamar a unidade.
Se a dor da morte generalizada define a condição humana, a revolta, de certa forma, lhe é contemporânea.
O revoltado metafísico, portanto, certamente não é ateu, como se poderia pensar, e sim obrigatoriamente blasfemo. Ele blasfema, simplesmente em nome da ordem, denunciando Deus como o pai da morte e o supremo escândalo. (…) O revoltado desafia mais do que nega. Pelo menos no início, ele não elimina Deus: simplesmente, fala-lhe de igual para igual. Mas não se trata de um diálogo cortês. Trata-se de uma polêmica animada pelo desejo de vencer.
Mas essas consequências não se devem absolutamente à revolta em si ou, pelo menos, elas só vêm à
cima na medida em que o revoltado esquece as suas origens, cansasse da dura tensão entre o sim e o não, entregando-se por fim à negação de todas as coisas ou à submissão total.
Revoltar-se contra a natureza corresponde a revoltar-se contra si mesmo.
Pode-se dessa forma, e sem paradoxo, dizer que a história da revolta, no mundo ocidental, é inseparável da história do cristianismo.
O Cristo veio resolver dois problemas principais, o mal e a morte, que são precisamente os problemas dos revoltados.
Para que o deus seja um homem, é preciso que ele se desespere.
Enquanto o Ocidente foi cristão, os Evangelhos foram os intermediários entre o céu e a terra. A cada grito solitário de revolta, apresentava-se a imagem do maior sofrimento possível. Já que o Cristo sofrerá isto, e voluntariamente, nenhum sofrimento mais era injusto, toda dor era necessária. De certa forma, a amarga intuição do cristianismo e seu pessimismo legítimo quanto ao coração humano é que a injustiça generalizada é tão satisfatória para o homem quanto a justiça total. Só o sacrifício de um deus inocente podia justificar a longa e universal tortura da inocência. Só o sofrimento de Deus, e o sofrimento mais desgraçado, podia aliviar a agonia dos homens. Se tudo,
sem exceção, do céu à terra, está entregue à dor, uma estranha felicidade é então possível.
Toda ética da solidão implica exercício de poder.
Mas desejar sem limites é o mesmo que aceitar ser desejado sem limites. A licença para destruir pressupõe que se possa também ser destruído.
A liberdade ilimitada do desejo significa a negação do outro e a supressão da piedade.
O atentado contra a criação é impossível. Não se pode destruir tudo, há sempre um resto.
O bem é uma noção definida e utilizada por Deus para desígnios injustos.
Muito mais do que o culto do indivíduo, o romantismo inaugura o culto do personagem.
Os românticos só falaram de forma tão magnífica sobre a solidão porque ela era a sua dor real.
A partir do romantismo, a tarefa do artista não será mais unicamente a de criar um mundo, nem de exaltar a beleza por si só, mas também a de definir uma atitude.
Isso porque o socialismo não é apenas a questão operária, é sobretudo a questão do ateísmo, de sua encarnação contemporânea.
A poesia revoltada, no fim do século XIX e no início do século XX, oscilou constantemente entre estes dois extremos: a literatura e a vontade de poder, o irracional e o racional, o sonho desesperado e a ação implacável.
Por uma última vez, esses poetas, e sobretudo os surrealistas, iluminam para nós o caminho que vai do parecer ao agir, através de um atalho espetacular.
O revoltado quer ser algo que não é, mesmo quando se tenha insurgido, para ser reconhecido em seu verdadeiro ser.
O eterno álibi do revoltado: o amor pela humanidade.
Revoltamo-nos contra a injustiça feita a nós mesmos e à humanidade.
Mas, no instante de lucidez em que se percebe simultaneamente a legitimidade dessa revolta e sua impotência, o furor da negação acaba por se estender justamente àquilo que se pretendia defender. Não conseguindo reparar a injustiça pela edificação da justiça, prefere-se, pelo menos, afogá-la em uma injustiça ainda mais generalizada, que finalmente se confunde com a aniquilação.
Para não se detestar a si próprio, seria necessário declarar-se inocente, audácia sempre impossível ao homem só; seu impedimento é que ele se conhece. Pode-se, pelo menos, declarar que todos são inocentes, embora sejam tratados como culpados. Neste caso, Deus é o criminoso.
Deus não está morto, mas foi destronado.
Não se trata mais de parecer, por um esforço obstinado da consciência, mas sim
de não mais existir como consciência.
Consolar a humanidade, tratá-la como irmã, voltar a Confúcio, Buda, Sócrates, Jesus Cristo, "moralistas que percorriam as aldeias morrendo de fome" (o que é historicamente duvidoso), são ainda projetos do desespero.
A banalidade também é uma atitude.
Trata-se, para o criador, de sua própria banalidade, toda ela ainda a ser criada. Cada gênio é ao
mesmo tempo estranho e banal. Ele nada será se for apenas um outro. Deveremos nos lembrar disso no que se refere à revolta. Ela tem os seus dândis e os seus serviçais, mas não reconhece neles os
seus filhos legítimos.
Revolta absoluta, insubmissão total, sabotagem como princípio, humor e culto do absurdo, o surrealismo, em sua intenção primeira, define-se como o processo de tudo, a ser sempre recomeçado. A recusa de todas as determinações é nítida, decisiva, provocadora. "Somos especialistas da revolta."
O surrealismo coloca-se assim à disposição da impaciência. Ele vive em um certo estado de raiva ferida; ao mesmo tempo, vive no rigor e na intransigência orgulhosa, o que pressupõe uma moral.
O processo do mundo real tornou-se logicamente o processo da criação.
O antiteísmo surrealista é racional e metódico.
Os surrealistas, ao mesmo tempo em que exaltavam a inocência humana, também acreditavam poder exaltar o assassinato e o suicídio.
A teoria do ato gratuito é o corolário da reivindicação de liberdade absoluta.
André Breton queria, ao mesmo tempo, a revolução e o amor, que são incompatíveis.
Uma das teses fundamentais do surrealismo é que realmente não há salvação.
A magia, as civilizações primitivas ou ingênuas, a alquimia, a retórica das flores de fogo ou das noites em claro, são outras tantas etapas maravilhosas a caminho da unidade e da pedra filosofal.
Cento e cinquenta anos de revolta metafísica e de niilismo viram retornar com obstinação, sob diferentes disfarces, o mesmo rosto devastado, o do protesto humano. Todos, erguidos contra a condição humana e seu criador, afirmaram a solidão da criatura, o nada de qualquer moral. Mas, ao mesmo tempo, todos procuraram construir um reino puramente terrestre em que reinariam as regras de sua escolha. Rivais do Criador, foram levados logicamente a refazer a criação por sua conta. Aqueles que recusaram qualquer outra regra ao mundo que criaram, a não ser a do desejo e a da força, correram para o suicídio ou para a loucura e anunciaram o apocalipse. Os outros, que quiseram criar as regras pela sua própria força, escolheram a vã ostentação, a aparência ou a banalidade; ou ainda o assassinato e a destruição.
O revoltado não exige a vida, mas as razões da vida. Ele rejeita as consequências que a morte traz. Se nada perdura, nada se justifica, aquilo que morre fica privado de sentido. Lutar contra a morte equivale a reivindicar o sentido da vida, a lutar pela ordem e pela unidade.
A revolta é uma ascese, embora cega. Se o revoltado ainda blasfema, é na esperança do novo deus. Ele fica abalado sob o choque do primeiro e mais profundo dos sentimentos religiosos, mas trata-se de um movimento religioso desiludido. Não é a revolta em si mesma que é nobre, mas o que ela exige, mesmo se o que ela obtém é ainda ignóbil.
Matar Deus e erigir uma Igreja é o movimento constante e contraditório da revolta.
A liberdade absoluta torna-se, afinal, uma prisão de deveres absolutos, uma ascese coletiva, uma história a ser terminada.
O revoltado só queria, em princípio, conquistar o seu próprio ser e mantê-lo diante de Deus. Mas ele
esquece as suas origens e, pela lei do imperialismo espiritual, ei-lo em marcha para o império do mundo, através de crimes multiplicados ao infinito. Ele baniu Deus de seu céu, mas, com o espírito
de revolta unindo-se abertamente ao movimento revolucionário, a reivindicação irracional da liberdade vai paradoxalmente usar como arma a razão, o único poder de conquista que lhe parece puramente humano. Morto Deus, resta a humanidade, quer dizer, a história, que é preciso compreender e construir. O niilismo, que, no próprio seio da revolta, afoga então a força de criação, acrescenta apenas que se pode construí-la por todos os meios disponíveis. No auge do irracional, o homem, em uma terra que ele sabe ser de agora em diante solitária, vai juntar-se aos crimes da razão a caminho do império dos homens. Ao "eu me revolto, logo existimos", ele acrescenta, tendo em mente prodigiosos desígnios e a própria morte da revolta: "E estamos sós."
Chega um tempo, contudo, em que a justiça exige a suspensão da liberdade.
A história dos homens, em certo sentido, é a soma de suas revoltas sucessivas.
Teoricamente, a palavra revolução conserva o sentido que tem em astronomia. É um movimento que descreve um círculo completo, que passa de um governo para outro após uma translação completa. Uma mudança de regime de propriedade sem a correspondente mudança de governo não é uma revolução, mas uma reforma. Não há revolução econômica, quer seus meios sejam pacíficos
ou sanguinários, que não seja simultaneamente política. Nisso, a revolução já se distingue do movimento de revolta. A famosa frase: "Não, majestade, não é uma revolta, é uma revolução" ressalta essa diferença essencial. Ela significa exatamente: "é a certeza de um novo governo". Na origem, o movimento de revolta é restrito. Não é mais do que um depoimento incoerente. A revolução, ao contrário, começa a partir da ideia. Mais precisamente, ela é a inserção da ideia na experiência histórica, enquanto a revolta é somente o movimento que leva da experiência individual à ideia. Ao passo que a história, mesmo que coletiva, de um movimento de revolta é sempre a de um compromisso sem solução nos fatos, de um protesto obscuro sem o compromisso de sistemas ou razões, uma revolução é uma tentativa de modelar o ato segundo uma ideia, de moldar o mundo em um arcabouço teórico. Por isso, a revolta mata homens, enquanto a revolução destrói ao mesmo tempo homens e princípios. Mas, pelas mesmas razões, pode-se dizer que ainda não houve revolução na história. Só pode haver uma, que seria a revolução definitiva. O movimento que parece fechar o círculo já começa a esboçar outro no instante mesmo em que o governo se constitui.
No caso do escravo que se revolta contra o senhor, há um homem que se insurge contra outro, nesta terra cruel, longe do céu dos princípios. O resultado é apenas o assassinato de um homem. Os motins de escravos, os levantes camponeses, as guerras dos mendigos, as revoltas rústicas antecipam um princípio de equivalência, uma vida contra outra, que, apesar de todas as audácias e de todas as mistificações, iremos sempre encontrar nas formas mais puras do espírito revolucionário, como, por exemplo, no terrorismo russo de 1905.
O insubmisso rejeita a servidão e afirma-se como igual ao senhor, quer, por sua vez, ser senhor
A justiça tem isto, e apenas isto, em comum com a graça: quer ser total e reinar de modo absoluto. A partir do momento em que entram em conflito, lutam até a morte.
Ao negar Deus, na verdade, é preciso matar o rei.
O rei deve morrer em nome do contrato social.
Uma pesquisa refere-se a princípios e por isso mesmo já é contestação. Ela supõe que a legitimidade tradicional, supostamente de origem divina, não é adquirida. Ela anuncia portanto uma outra legitimidade e outros princípios. O Contrato social é lambem um catecismo, do qual conserva o tom e a linguagem dogmática.
Contrato social (Rousseau) é em primeiro lugar uma pesquisa sobre a legitimidade do poder.
A partir do Contrato social, os povos se criam sozinhos antes de criarem os reis. Quanto a Deus, é
assunto encerrado provisoriamente. Na ordem política, temos aqui o equivalente à revolução de Newton. O poder não busca mais sua origem no arbitrário, mas no consentimento geral. E m outras palavras, ele não é mais o que é, mas o que deveria ser.
O Contrato social dá uma larga dimensão e uma explicação dogmática à nova religião cujo deus é a razão, confundida com a natureza, e cujo representante na terra, em lugar do rei, é o povo considerado em sua vontade geral.
Essa pessoa política, que se tornou soberana, é também definida como pessoa divina. Tem aliás todos os atributos da pessoa divina. Ela é efetivamente infalível, já que o soberano não pode querer o abuso.
A vontade geral é realmente coercitiva, seu poder não tem limites. Mas o castigo que imporá a quem recusar-lhe obediência não é mais que uma forma de "forçá-lo a ser livre". A deificação se completa quando Rousseau, separando o soberano de suas próprias origens, chega a distinguir a vontade geral da vontade de todos.
A vontade geral é em primeiro lugar a expressão da razão universal, que é categórica. Nasceu o novo Deus.
Toda ideologia é constituída contra a psicologia.
Até o Cristo, que pode perdoar os culpados, não pode absolver os falsos deuses.
Se a vontade geral se expressa livremente, ela só pode ser a expressão universal da razão. Se o povo é livre, ele é infalível.
Princípios eternos comandam a nossa conduta: a Verdade, a Justiça, a Razão, enfim. Eis o novo deus.
Privado de seus representantes, de qualquer intercessor, o deus dos filósofos e dos advogados tem apenas o valor de demonstração.
A religião da razão estabelece de modo natural a república das leis. A vontade geral é expressa em leis codificadas por seus representantes.
A moral", diz Saint-Just, "é mais forte que os tiranos.
A moral, quando é formal, devora.
A virtude absoluta é impossível, a república do perdão conduz, por uma lógica implacável, à república das guilhotinas.
Montesquieu já havia denunciado essa lógica como uma das causas da decadência das sociedades, ao dizer que o abuso de poder é maior quando as leis não o preveem.
A própria virtude "une-se ao crime nos tempos de anarquia".
Toda revolta supõe uma unidade.
Ao mesmo tempo, os juristas burgueses do século XVIII, ao esmagarem sob os seus princípios as justas e vitais conquistas de seu povo, abriram caminho para os dois niilismos contemporâneos: o do indivíduo e o do Estado.
Se os grandes princípios não têm fundamentos, se a lei só exprime uma tendência provisória, ela só é feita para ser transgredida ou imposta.
A revoltada do século XIX ao negar qualquer princípio superior. Aos regicídios do século XIX sucedem-se os deicídios do século XX, que chegam aos extremos da lógica revoltada e querem fazer da terra o reino em que o homem será deus.
O reino do direito abstrato coincide com o da opressão.
O pensamento alemão acabou portanto substituindo a razão universal, porém abstrata, de Saint-Just e de Rousseau, por uma noção menos artificial, porém mais ambígua - o universal concreto. Até aquele momento, a razão pairava acima dos fenômenos que com ela se relacionavam. Ei-la, de agora em diante incorporada ao fluxo dos acontecimentos históricos, que ela explica, ao mesmo tempo em que estes lhe dão um corpo.
De repente, a verdade, a razão e a justiça encarnaram-se no devir do mundo. Mas, ao lançá-las numa aceleração perpétua, a ideologia alemã confundia a sua existência com o seu movimento, fixando o término dessa existência no fim do devir histórico, se é que houvesse um fim. Esses valores deixaram de ser referências para se tornarem fins.
A ação é apenas um cálculo em função dos resultados, e não dos princípios.
Ela se confunde, consequentemente, com um movimento perpétuo.
O movimento revolucionário de nosso tempo é em primeiro lugar uma denúncia violenta da hipocrisia formal que preside à sociedade burguesa.
A transcendência divina, até 1789, servia para justificar o arbítrio real. Após a Revolução Francesa, a transcendência dos princípios formais, razão ou justiça, serve para justificar uma dominação que não é justa nem racional. Essa transcendência, é portanto, uma máscara que precisa ser arrancada. Deus está morto, mas, como Stirner havia previsto, é preciso matar a moral dos princípios onde ainda se encontra a memória de Deus.
São os outros que nos engendram. Só recebemos um valor humano, superior ao valor animal, na sociedade.
O ser que a consciência hegeliana procura obter nasce na glória, duramente conquistada, de uma aprovação coletiva. E importante assinalar que, no pensamento que vai inspirar nossas revoluções, o bem supremo não coincide realmente, portanto, com o ser, mas com um parecer absoluto. A história dos homens como um todo nada mais é, de qualquer sorte, que uma longa luta até a morte pela conquista do prestígio universal e do poder absoluto. Em sua essência, ela é imperialista.
O advento do mundo técnico suprime a morte ou o medo da morte no mundo natural?
Os séculos XIX e XX, em sua tendência mais profunda, são séculos que tentaram viver sem transcendência.
A supressão de todo valor moral e dos princípios, sua substituição pelo fato — rei provisório,
mas real — , só pôde conduzir, como vimos, ao cinismo político, quer do indivíduo, quer, mais seriamente, de Estado.
Então, já ressoam os acentos de uma nova e estranha profecia: "A individualidade tomou o lugar da fé; a razão, o da Bíblia; a política, o da religião e da Igreja; a terra, o do céu; o trabalho, o da
oração; a miséria, o do inferno; e o homem, o lugar do Cristo."
Só há portanto um inferno, e ele é deste mundo: é contra ele que se precisa lutar.
A resolução desse novo conflito entre o deus universal e o ser humano será fornecida pelo Cristo, que reconcilia em si o universal e o singular. Mas o Cristo faz de algum modo parte do mundo sensível. Ele pôde ser visto, viveu e morreu. Logo, ele é apenas uma etapa no caminho do universal;
ele também deve ser negado dialeticamente. E preciso somente reconhecê-lo como homem-deus para obter uma síntese superior.
Saltando os escalões intermediários, bastará dizer que essa síntese, depois de se ter encarnado na Igreja e na Razão, termina no Estado absoluto, erigido pelos soldados-operarios, no qual o espírito
do mundo se refletirá enfim em si mesmo no reconhecimento mútuo de cada um por todos e na reconciliação universal de tudo aquilo que existiu sob o sol.
Essas conclusões serão as do individualismo revoltado. O indivíduo não pode aceitar a história tal como ela ocorre. Ele deve destruir a realidade para afirmar o que ele é, não para colaborar com ela.
O niilismo dos anos 1860 começou, aparentemente, pela negação mais radical possível, rejeitando qualquer ação que não fosse puramente egoísta.
O único valor reside, portanto, no egoísmo racional.
Sua solução pessoal consiste em atribuir à sua negação a intransigência e a paixão da fé.
Aqueles que negam tudo compreendem pelo menos que a negação é uma desgraça. Podem então tornar-se acessíveis à desgraça de outrem, negando enfim a si próprios.
O Estado é o crime. (Bakunin)
Destruir tudo implica construir sem fundações; as paredes têm de ser mantidas de pé pela força dos próprios braços. Aquele que rejeita todo o passado, sem dele preservar nada daquilo que poderia servir para revigorar a revolução, está condenado a só encontrar justificação no futuro e, enquanto espera, encarrega a polícia de justificar o provisório.
"O revolucionário é um homem condenado antecipadamente. Ele não deve ter relações românticas, nem coisas ou seres amados. Ele deveria despojar-se até de seu nome. Nele, tudo deve
concentrar-se em uma única paixão: a revolução." Nechaiev
Quando a revolução é o único valor, não há mais direitos; na verdade, só há deveres.
Não está servindo a si mesmo, mas à causa.
O grupo da Vontade do Povo vai, portanto, consagrar o terrorismo individual
como um princípio, inaugurando a série de assassinatos que prosseguirá até 1905, com o partido socialista revolucionário. E neste ponto que nascem os terroristas, de costas para o amor, unidos contra a culpabilidade dos senhores, mas solitários em seu desespero, em meio a contradições próprias que só poderão resolver com o duplo sacrifício de sua inocência e de sua vida.
A história, precisamente, distingue-se da natureza pelo fato de transformá-la pelos meios da vontade, da ciência e da paixão.
Se as armas podem garantir a teoria, a teoria pode do mesmo modo dar origem às armas.
O primum vivere é sua primeira determinação. (do ser humano, grifo meu) O pouco que ele
pensa nesse momento tem relação direta com as suas necessidades inevitáveis.
De resto, o determinismo puro é também absurdo. Se assim não fosse, bastaria uma única afirmação verdadeira para que, de conseqüência em conseqüência, se chegasse à verdade total. Como isso não acontece, ou bem nunca pronunciamos uma só afirmação verdadeira, nem mesmo a que situa o determinismo, ou então nos ocorre dizer a verdade, mas sem conseqüências, e o determinismo é falso.
Situar a origem do homem na determinação econômica é limitar o homem a suas relações sociais. Não há homem solitário, esta é a descoberta incontestável do século XIX . Uma dedução arbitrária leva então a dizer que o homem só se sente solitário na sociedade por motivos sociais. Se, na verdade, o espírito solitário deve ser explicado por meio de algo que esteja fora do homem, este está
a caminho de uma transcendência. O social, ao contrário, só tem o homem como autor; se, além disso, se pode afirmar que o social é ao mesmo tempo criador do homem, chega-se à explicação total que permite expulsar a transcendência.
O capital retoma a dialética do domínio e da servidão, substituindo a consciência de si pela autonomia econômica, o reino final do Espírito absoluto pelo advento do comunismo. "O ateísmo é o humanismo intermediado pela supressão da religião; o comunismo é o humanismo intermediado
pela supressão da propriedade privada." A alienação religiosa tem a mesma origem que a alienação econômica. Só se acaba com a religião realizando a liberdade absoluta do homem quanto a suas determinações materiais. A revolução identifica-se com o ateísmo e com o reino do homem.
O capitalismo burguês define-se, desta forma, pela separação do produtor e dos meios de produção.
O resultado inevitável do capitalismo privado é uma espécie de capitalismo de Estado que, em seguida, basta ser colocado a serviço da comunidade para que nasça uma sociedade em que capital e
trabalho, confundidos a partir de agora, produzirão em um único movimento abundância e justiça.
Os proletários "podem e devem aceitar a revolução burguesa como uma condição da revolução operária". Marx
O proletariado é forçado a usar a sua riqueza para o bem universal. Ele não é o proletariado, ele é o universal em oposição ao particular, quer dizer, ao capitalismo. O antagonismo entre o capital e o proletariado é a última fase da luta entre o singular e o universal, a mesma luta que anima a tragédia histórica do senhor e do escravo.
"Só os proletários totalmente excluídos dessa afirmação de sua personalidade são capazes de realizar a completa autoafirmação." Marx
Esta é a missão do proletariado: fazer surgir a suprema dignidade da suprema humilhação. Por suas dores e suas lutas, ele é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação. Ele é inicialmente o portador multiforme da negação total e, em seguida, o arauto da afirmação definitiva.
E preciso que não se dê nada ao operário para que ele possa um dia ter tudo.
Uma tal esperança obriga a menosprezar problemas que aparecem então como secundários.
A angústia da morte é um luxo que está muito mais ligado ao ocioso do que ao trabalhador, asfixiado por sua própria ocupação.
A utopia substitui Deus pelo futuro.
"Um fim que tem necessidade de meios injustos não é um fim justo."
Mas não é bom que futuros revolucionários se vejam na situação de esperar o próprio sustento pelas mãos do Estado. Esse hábito forçado acarreta outros, menos forçados, dos quais Hitler fez uma
doutrina.
As duas formas tradicionais de opressão que a humanidade conheceu, pelas armas e pelo dinheiro, Simone Weil acrescenta uma terceira, a opressão pela função: "Pode-se suprimir a oposição entre comprador e vendedor do trabalho sem suprimir a oposição entre aqueles que dispõem da máquina
e aqueles de quem a máquina dispõe."
Nada é menos conquistador do que a razão.
A economia coincide com o sofrimento e a desgraça da história, que com ela desaparecem. Estamos no Éden.
O fim da história não é um valor de exemplo e de aperfeiçoamento. É um princípio arbitrário e terrorista.
A questão do século XX , pela qual morreram os terroristas de 1905 e que atormenta o mundo contemporâneo, pouco a pouco tornou-se mais precisa: como viver sem a graça e sem a justiça?
A vontade de poder veio ocupar o lugar da vontade de justiça, fingindo inicialmente identificar-se com ela, relegando-a depois a algum lugar no fim da história, quando já não houver mais nada para ser dominado na terra.
O Estado burguês apoia-se na polícia e no exército, porque é, em primeiro lugar, um instrumento de opressão.
Mas o imperialismo, mesmo o da justiça, não tem outro fim senão a derrota ou o Império do mundo. Até lá, não há outro meio a não ser a injustiça.
O caminho da unidade passa então pela totalidade. Totalidade e Julgamento. Totalidade, com efeito, não é mais que o antigo sonho de unidade comum aos crentes e aos revoltados, mas projetado horizontalmente sobre uma terra privada de Deus.
Renunciar a todo valor é o mesmo que renunciar à revolta para aceitar o Império e a escravidão.
Explica-se o milagre dialético, a transformação da quantidade em qualidade: toma-se a decisão de chamar a servidão total de liberdade.
Corre-se então para a permanência do partido, como antes se corria para o altar.
A verdadeira paixão do século X X é a servidão.
O Império é ao mesmo tempo guerra, obscurantismo e tirania, afirmando desesperadamente que será fraternidade, verdade e liberdade: a lógica de seus postulados obriga-o a isso.
Enquanto espera dominar o espaço, o Império vê-se também obrigado a reinar sobre o tempo. Ao negar toda verdade estável, teve que chegar ao ponto de negar a forma mais baixa da verdade, a da história. Ele transportou a revolução, ainda impossível em escala mundial, ao passado que ele se empenha em negar. Isso também é lógico. Toda coerência, que não seja puramente econômica, do passado ao futuro humano, supõe uma constante que por sua vez poderia lembrar uma natureza humana.
A aceleração própria de nosso tempo atinge, desse modo, a fabricação da verdade que nesse ritmo
torna-se pura ilusão.
Uma revolução condenada, a fim de perdurar, a negar sua vocação universal ou a renunciar a si mesma para ser universal, vive sobre princípios falsos.
O Império supõe uma negação e uma certeza: a certeza da infinita maleabilidade do homem e a negação da natureza humana.
A amizade das pessoas — não há outra definição — é a solidariedade particular, até a morte, contra o que não é do reino da amizade. A amizade das coisas é a amizade em geral, a amizade com todos, que supõe, quando deve ser preservada, a denúncia de cada um. Aquele que ama a amiga ou o amigo ama-o no presente, e a revolução só quer amar um homem que ainda não surgiu. Amar, de certa maneira, é matar o homem acabado, que deve nascer pela revolução. Para que viva, um dia, ele deve ser, a partir de hoje, preferido a tudo. No reino das pessoas, os homens se ligam pela afeição; no Império das coisas, os homens se unem pela delação. A cidade que se queria fraternal torna-se um formigueiro de homens sós.
O diálogo, relação entre as pessoas, foi substituído pela propaganda ou pela polêmica, que são dois tipos de monólogo.
Como é desgraçada", bradava Marx, "esta sociedade que não conhece meio de defesa melhor que
o carrasco!"
Servidão ou mistificação é desgraça comum a todos os tempos. Sua tragédia é a tragédia do niilismo; ela confunde-se com o drama da inteligência contemporânea que, aspirando ao universal, acumula as mutilações do homem. A totalidade não é a unidade.
Os princípios que os homens se atribuem acabam tomando o lugar de suas intenções mais nobres.
Toda religião gira em torno das noções de inocência e de culpabilidade.
O mundo do julgamento é um mundo circular em que o êxito e a inocência autenticam-se
mutuamente, em que todos os espelhos refletem a mesma mistificação.
No regime capitalista, o homem que se diz neutro é considerado, objetivamente, favorável ao regime.
No século XX, o poder é triste.
Nosso tempo é a era das técnicas privadas e públicas de aniquilação.
O terror continua sendo o caminho mais curto para a imortalidade.
A destruição do homem afirma ainda o homem.
"A solidão é o poder", diz Sade.
Para milhares de solitários hoje o poder, por significar o sofrimento do outro, confessa a necessidade do outro.
O terror é a homenagem que solitários rancorosos acabam rendendo à fraternidade dos homens.
É preciso apostar no renascimento.
O revoltado nada é se não é revolucionário.
A contradição, na realidade, é mais restrita. O revolucionário é ao mesmo tempo revoltado ou então não é mais revolucionário, mas sim policial e funcionário que se volta contra a revolta. Mas, se ele é revoltado, acaba por se insurgir contra a revolução. De tal modo que não há progresso de uma atitude a outra, mas simultaneidade e contradição sempre crescente. Todo revolucionário acaba como opressor ou herege.
A revolução absoluta supunha a efetivamente a absoluta maleabilidade da natureza humana, sua redução possível ao estado de força histórica. Mas a revolta, no homem, é a recusa de ser tratado como coisa e de ser reduzido à simples história.
"Eu me revolto, logo existimos", dizia o escravo. A revolta metafísica acrescentava então o "estamos sós" em que ainda vivemos atualmente.
Quanto mais profunda é a exaltação, tanto mais implacável é a recusa.
M s a afirmação de um limite, de uma dignidade e de uma beleza comuns a todos os homens só acarreta a necessidade de estender esse valor a todos e a tudo e marchar para a unidade sem renegar suas origens.
A reivindicação da revolta é a unidade, a reivindicação da revolução histórica, a totalidade.
A revolta, na verdade, lhe diz e irá dizer-lhe cada vez mais alto que é preciso tentar agir, não para começar um dia a existir, aos olhos de um mundo reduzido ao consentimento, mas em função dessa existência obscura que já se manifesta no movimento de insurreição.
Antes, porém, consideremos apenas que ao "Eu me revolto, logo existimos", ao "Nós estamos sós" da revolta metafísica, a revolta em conflito com a história acrescenta que, em vez de matar e morrer
para produzir o ser que não somos, temos que viver e deixar viver" para criar o que somos.
A arte é também esse movimento que exalta e nega ao mesmo tempo.
"Nenhum artista tolera o real", diz Nietzsche. É verdade; mas nenhum artista pode prescindir do real. A criação é exigência de unidade e recusa do mundo. Mas ela recusa o mundo por causa daquilo que falta a ele e em nome daquilo que, às vezes, ele é. A revolta deixa-se observar aqui, fora da história, em estado puro, em sua complicação primitiva. A arte deveria portanto nos dar uma última perspectiva sobre o conteúdo da revolta. Devemos assinalar, no entanto, a hostilidade que todos os reformadores revolucionários mostraram em relação à arte.
O julgamento da arte está definitivamente comprometido e prossegue hoje com a cumplicidade constrangida de artistas e de intelectuais dedicados à calúnia de sua arte e de sua inteligência.
A revolta, de tal ponto de vista, é fabricante de universos. Isto também define a arte. A bem dizer, a exigência da revolta é em parte uma exigência estética.
O artista refaz o mundo por sua conta. Mas a revolta do artista contra o real, e ela torna-se suspeita
para a revolução totalitária, contém a mesma afirmação que a revolta espontânea do oprimido.
Da mesma forma, nenhuma arte pode viver da recusa total. Assim como todo pensamento, a começar pelo da não-significação, significa, não há igualmente arte do não-sentido. O homem pode permitir-se a denúncia da injustiça total do mundo e reivindicar uma justiça total que ele será o único a criar Mas ele não pode afirmar a feiura total do mundo. Para criar a beleza, ele deve ao mesmo tempo recusar o real e exaltar alguns de seus aspectos.
O romance nasce ao mesmo tempo que o espírito de revolta, e traduz, no plano estético, a mesma
ambição.
Dar nome ao desespero é superá-lo. A literatura desesperada é uma contradição em termos.
O romance é antes de tudo um exercício da inteligência a serviço de uma sensibilidade nostálgica ou revoltada.
A arte formal e a arte realista são noções absurdas.
Nenhuma arte pode recusar de modo absoluto o real.
O verdadeiro formalismo é silêncio.
Escrever já é escolher.
A arte é uma exigência de impossível à qual se deu forma.
Ainda que isso entre em conflito com os preconceitos da época, o maior estilo em arte é a expressão da mais alta revolta.
A sociedade da produção é apenas produtiva, não criadora.
Criar, hoje em dia, é criar perigosamente.
Nos tempos antigos, o sangue do assassinato provocava ao menos um horror sagrado; santificava desse modo o valor da vida.
Mas estamos ainda em um mundo revoltado; a revolta não se tornou, pelo contrário, o álibi de novos tiranos?
De nada adianta aos revoltados, decididos a passarem pela violência e pelo assassinato para preservarem a esperança de existir, substituírem o Nós existimos pelo Nós existiremos.
Quando assassino e vítima tiverem desaparecido, a comunidade irá refazer-se sem eles.
O revoltado só tem uma maneira de reconciliar-se com o seu ato assassino, se a isso se deixou levar: aceitar a própria morte e o sacrifício.
A servidão faz reinar o mais terrível dos silêncios.
Da mesma forma, já que o ser humano, ao mentir, se isola dos outros seres humanos, a mentira fica proscrita, assim como, num patamar inferior, o assassinato e a violência, que impõem o silêncio definitivo. A cumplicidade e a comunicação descobertas pela revolta só podem viver no diálogo livre. Cada equívoco, cada mal-entendido leva à morte; a linguagem clara, a palavra simples — só elas podem salvar dessa morte.
Mas isso basta, provisoriamente, para dizer que a liberdade mais extrema, a liberdade de matar, não
é compatível com as razões da revolta. A revolta não é, de forma alguma, uma reivindicação de liberdade total. Ao contrário, a revolta ataca sistematicamente a liberdade total. Ela contesta, justamente, o poder ilimitado que permite a um superior violar a fronteira proibida. Longe de reivindicar uma independência geral, o revoltado quer que se reconheça que a liberdade tem seus limites em qualquer lugar onde se encontre um ser humano, já que o limite é precisamente o poder de revolta desse ser. Nisto reside a razão profunda da intransigência revoltada. Quanto mais a revolta tem consciência de reivindicar um limite justo, mais ela é inflexível. O revoltado exige sem dúvida uma certa liberdade para si mesmo; mas em nenhum caso, se for consequente, reivindicará o direito de destruir a existência e a liberdade do outro. Ele não humilha ninguém. A liberdade que reclama, ele a reivindica para todos; a que recusa, ele a proíbe para todos.
Aqui, o poder ilimitado não é a única lei. E em nome de outro valor que o revoltado afirma ao mesmo tempo a impossibilidade da liberdade total e reclama para si mesmo a liberdade relativa, necessária para reconhecer essa impossibilidade. Toda liberdade humana, em sua essência, é dessa forma relativa.
Se há revolta, é porque a mentira, a injustiça e a violência fazem parte da condição do revoltado.
A revolta se desenrola também na história, que exige não somente opções exemplares, mas também atitudes eficazes. (…) A contradição revoltada se repercute então em antinomias aparentemente insolúveis cujos modelos, em política, são por um lado a oposição entre a violência e a não-violência, e, por outro, a oposição entre a justiça e a liberdade. Tentemos defini-las em seu paradoxo.
No mundo de hoje, só uma filosofia da eternidade pode justificar a não-violência.
Ficará em aberto a escolha entre a graça e a história, entre Deus ou a espada.
Qual poderia ser a atitude do revoltado.? Ele não pode se esquivar do mundo e da história sem renegar o próprio princípio de sua revolta, nem escolher a vida eterna sem se resignar, em certo sentido, ao mal.
O mesmo ocorre com a justiça e a liberdade. Ambas as exigências já estão no princípio do movimento de revolta, e voltamos a encontrá-las no ímpeto revolucionário. A história das revoluções mostra, contudo, que quase sempre elas entram em conflito, como se suas exigências mútuas fossem inconciliáveis. A liberdade absoluta é o direito do mais forte de dominar. Ela mantém portanto os conflitos que se beneficiam da injustiça. A justiça absoluta passa pela supressão de toda contradição: ela destrói a liberdade.' Arevolução para obter justiça, pela liberdade, acaba jogando uma contra a outra. Desta forma, em toda revolução, uma vez liquidada cria uma demonstração que pode assim se resumir; a liberdade absoluta é a destruição de todo valor; o valor absoluto suprime toda a liberdade.
A revolução do século XX crê evitar o niilismo e ser fiel à verdadeira revolta, substituindo Deus pela história.
A revolta só visa ao relativo e só pode prometer uma dignidade certa combinada com uma justiça relativa. Ela toma o partido de um limite no qual se estabelece a comunidade humana. O seu universo é o universo do relativo.
'A inteligência é a nossa faculdade de não levar até o fim aquilo que pensamos, para que possamos
acreditar na realidade", diz Lazare Bickel.
A desumana e verdadeira desmedida está na divisão do trabalho.
Mas não se pode dizer que ser é apenas existir.
Esse individualismo não é gozo, é sempre luta e, às vezes, alegria ímpar, no auge da orgulhosa compaixão.
O sindicalismo, assim como a Comuna, é a negação, em favor do real, do centralismo burocrático e abstrato.
Carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e as nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo, mas combatê-los em nós mesmos e nos outros.
Arte e a revolta só morrerão com a morte do último homem.
O cristianismo histórico só respondeu a esse protesto contra o mal pela anunciação do reino e, depois, da vida eterna, que exige a fé. Mas o sofrimento desgasta a esperança e a fé; ele continua então solitário e sem explicação. As multidões que trabalham, cansadas de sofrer e morrer, são multidões sem deus.
No auge da tensão, alçará voo, em linha reta, uma flecha mais inflexível e mais livre.
Equipe
Diretor cinematográfico: George Neri
Produtor executivo: Edson Bastos
Diretor de fotografia: Alex Oliveira
Diretor de áudio e trilha sonora: Ronaldo Ros
Assistente de direção e atriz: Morgana Poiesis
Montagem: Ayume Oliveira e George Neri
Diretor de produção: Gisela Stael e Dió Araújo
Drone /logger /assistente de fotografia: Isaac Souto
Assistente fotografia: Lucas Oliveira
Consultor Roteiro: Geraldo Sarno
Correção de cor: Henrique Filho
Legendas: Ariel Bulhões
Imagens subaquáticas: Marquinhos
Remasterização audio: Bruno Rodrigues
Serviços Advocatícios: Joana Campos
Contador: Bruno Guimaraes
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